Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, no encalço. Amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. G. Rosa

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

UM CAFUNÉ MÃEZINHA...



cafuné mãezinha

Um cafuné na minha carapinha

Mimos e carícias nos meus cabelos

Numa brincadeira de assim

... ... Meu cabelo ruim

E teu cafuné a embalar meus pesadelos!



Um cafuné na minha carapinha

Teus dedos mãezinha, rios

E estrelas nos receios

E caminhos dos meus cabelos

Teus dedos tranquilos

A me afagarem assim mãezinha!



Um cafuné a embalar meus medos

E o amor a brotar e a jorrar

Na minha carapinha

Que eu oiço a voz do luar

Mãezinha

Oiço o luar nos teus dedos!



Um cafuné e conta-me estórias

E sabedorias:

“Era uma vez, o coelho e o macaco…”

Uma estória de carapinha

A adormecer noitinha

E eu durmo o embalo do teu cântico!



Os caminhos do dia correm pantanosos

Os silêncios da noite misteriosos

Eu em medos e manias

À espera das tuas estórias

Teu cafuné mãezinha

A adormecer-me a carapinha!



Oh! A noite é dura

E eu durmo insónias na noite escura

A sonhar teu cafuné mãezinha

Minha carapinha castanha

Meu cabelo ruim

À espera mãezinha, num cafuné de assim!



Um cafuné mãezinha

Um cafuné na minha carapinha!



Décio Bettencourt Mateus fez esta poesia certamente pra sua mãe, mas como a poesia nao pertence ao poeta e sim a quem precisa dela, peço licença a Décio pra mandar uma homenagem a minha maezinha nesta tarde de muita chuva... saudade Veinha, saudades de voce! Deus que lhe cuide sempre onde a senhora estiver aceita meu beijo melhor...
Sua filha que muito lhe ama.... esqueça disso nunca... Eu amo vc minha maezinha.....


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Bi Kidude e sua música


Tão velho como  a minha  língua


Fatuma Binti Baraka, também conhecida por Bi Kidude, a rainha do Taarab, género musical de Zanzibar. Ninguém sabe ao certo quando nasceu, sabe-se que tem 93 anos, ainda repletos duma energia fabulosa, basta vê-la cantar, dançar e tocar um tambor unyago que segura entre as coxas.


Por falar em coxas. Unyago, é um ritual antigo, exclusivo para raparigas, onde se preparam as adolescentes para a puberdade e a forma de melhor disfrutar da sua sexualidade. Bi.Kidude é uma das poucas mulheres que peritas neste ritual, onde também, as educa contra a opressão e os abusos sexuais, numa alusão à sua vida e o modo como a enfrentou.


Ritmos tradicionais, passos de dança baseados nos movimentos dos chimpanzés. De liberdade, emancipação, satisfação. Prazer.


Fonte: Textículos


Bi Kidude é considerada por muitos, a artista musical viva, mais velha do mundo. Não se sabe a data exacta do seu nascimento, o que ajuda a criar a sua aura mítica. Alguns sites dizem que ela tem 93 anos, outros especulam de que ela terá pelo menos 100 anos. De qualquer das formas, a sua carreira musical tem mais de cinco décadas.

Gravou o seu primeiro albúm a solo “Zanzibar” em 1999. Em 2005 ganhou o prestigiado prémio WOMEX, pelo seu percurso musical e contribuição para a World Music.


O documentário “As Old as My Tongue: The Myth and Life of Bi Kidude” entrou para o circuíto dos festivais de cinema e foi tremendamente aclamado. O documentário acompanha Bi Kidude ao longo de três anos, desde a sua terra natal Stone Town em Zanzibar, até aos palcos de Paris.


                    Tão velho como a minha língua.


 



domingo, 10 de julho de 2011

De como surgiram as palavras Pinga e água-ardente


Cachaça, cultura e prazer do Brasil.

Você sabia?


Antigamente, no Brasil, para se ter o melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam-no ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou.

O que fazer então? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo fermentado. Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o "azedo" do melado antigo era álcool que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente. Era a cachaça já formada que pingava. Daí o nome "Pinga". Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de "água-ardente".

Caindo em seus rostos escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. Sendo isso muito bom, sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo.

Engenho-banguê em funcionamento, década de 1950.

Engenho Espadas, Pernambuco, Brasil.




Fonte: História contada no Museu do Homem do Nordeste.

Não basta somente beber, tem que conhecer!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cacussos

Que poder de comunicação tem o Helder que onde chega encanta, agrada e ilumina ? Quem nos dera, esta comunicação harmoniosa  fossem compreensões que se  multiplicassem  pelo mundo. Certamente  a humanidade  teria menos sofrimento e talvez fosse menos  doloroso para se viver.


Helder é um jornalista português, um amigo do qual já falamos e publicamos aqui algumas de suas pérolas. Atualmente ele trabalha na África  de onde sempre nos manda notícias do cotidiano, como essa de agora.

Cacussos

O "restaurante" da Etelvina (Vina) à beira da estrada



A Vina é uma ternura de pessoa


Cacussos, Cuca e bússola para não perdermos o norte.


A fome apertava o estômago, a sede mais secava a garganta depois de uns bons trinta e tal quilómetros de picada, com muito pó, para chegarmos a Muxima, o Manuel Ricardo e eu. Dirigimo-nos ao pomposo Restaurante-pousada que, em dia feriado, estava fechado. Um velho guarda, Mário, solícito e sem nada para guardar, dispos-se a mostrar-nos um sítio onde podiamos encontrar de comer. Muxima, um lugar de culto, visitado por dezenas/centenas de pessoas por fim-de-semana, não tem um sítio "normal" para se tomar, sequer, um copo de cerveja. Devem estar todos à espera sei lá de quê.


Mário pôs-se a caminhar ao lado do carro para nos indicar, como deve ser, sem hipótese de erro, o caminho mais directo para a nossa salvação. E foi-nos levando para a aldeia de cubatas. É aqui, disse ele. Nem era preciso, Etelvina, a patroa do lugar, veio de imediato à minha janela e antes que eu dissesse alguma coisa ela, com um sorriso mais acolhedor do que todas as grades de Cuca do mundo, atira directa ao estômago: "Tenho cacussinhos fresquinhos acabados de chegar". E, pergunto já a salivar: "Tem cerveja bem geladinha?". "Tenho, muito geladinha". Assim mesmo, com todos os "inhos" em que nós portugueses somos exímios em expressar os nossos sentimentos.


Saimos do carro apressados para a sombra da cubata-restaurante, enquanto Mammy, uma menina de 20 anos, mãe e estudante, se apressava a tirar duas latas de Cuca bem "geladinhas". Claro, tivemos todo o gosto em convidar Mário para tomar uma, coisa que fez sem exigir insistência. Mário guarda as instalações de uma empresa estatal, nem percebi bem o que era. Esteve nove anos na guerra (a guerra civil angolana), correu o norte de Angola. Desmobilizado, regressou à sua Muxima. Bebeu a Cuca saboreando cada gole, conversando sobre os problemas da vida.

Etelvina aparece a perguntar se a cerveja estava bem ao nosso gosto. Que sim, claro, a sede era tanta e calor abafado da cobertura de zinco aceleraram bem o consumo, que até parecia que o precioso líquido se evaporava.

Por volta da terceira rodada, chegou Etelvina, a Vina, com magníficos "cacussinhos" (como ela ternamente chama àqueles peixinhos do rio Kwanza), acabados de assar nas brazas do velho fogareiro que tantas fomes já deve ter matado.

Numa pausa, Vina senta-se à nossa mesa para saber se estava tudo bem, se precisavamos de mais alguma coisa ao mesmo tempo que, cordial, me perguntava como eu me chamava. Chamo-me "Helder". "Helder??", responde ela com ar incrédulo, "eu tenho um sobrinho que se chama também Helder. Agora tu ficas meu sobrinho."

Num abraço feito de subita descoberta de um familiar longínquo e improvável, selamos uma amizade para o resto da vida, trocando números de telemóvel.

Publicada por Helder de Sousa

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Fatos e idéias: VERBOS NOVOS E HORRÍVEIS - Ricardo Freire

Procurava uma explicação para o  verbo  agora criado pela turma da OAB: PROTOCOLIZAR. Sou alguém conservador por demais e essa mudança de protocolar para protocolizar em mim causou uma certa irritabilidade ainda que sem razão,  mesmo por que, raramente eu "protocolizo" algum documento. Pois muito bem,  por conta dessa irritabilidade em mim, surgiriu-me uma amiga, que  eu lesse o texto abaixo que nele encontraria uma explicação que me ajudaria.Não é que o texto tem razão? Minha amiga também.


Fatos e idéias: verbos novos e horríveis

De Ricardo Freire


Não, por favor, nem tente me disponibilizar alguma coisa, que eu não quero. Não aceito nada que pessoas, empresas ou organizações me disponibilizem. É uma questão de princípios. Se você me oferecer, me der, me vender, me emprestar, talvez eu venha a topar. Até mesmo se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em disponibilizar, nada feito.



Caso você esteja contando comigo para operacionalizar algo, vou dizendo desde já: pode ir tirando seu cavalinho da chuva. Eu não operacionalizo nada para ninguém e nem compactuo com quem operacionalize. Se você quiser, eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação. Se você pedir com jeitinho, eu até implemento, mas operacionalizar, jamais.


O quê? Você quer que eu agilize isso para você? Lamento, mas eu não sei agilizar nada. Nunca agilizei. Está lá no meu currículo: faço tudo, menos agilizar. Precisando, eu apresso, eu priorizo, eu ponho na frente, eu dou um gás. Mas agilizar, desculpe, não posso, acho que matei essa aula.


Outro dia mesmo queriam reinicializar meu computador. Só por cima do meu cadáver virtual. Prefiro comprar um computador novo a reinicializar o antigo. Até porque eu desconfio que o problema não seja assim tão grave.


Em vez de reinicializar, talvez seja o caso de simplesmente reiniciar, e pronto.


Por falar nisso, é bom que você saiba que eu parei de utilizar. Assim, sem mais nem menos. Eu sei, é uma atitude um tanto radical da minha parte, mas eu não utilizo mais nada. Tenho consciência de que a cada dia que passa mais e mais pessoas estão utilizando, mas eu parei. Não utilizo mais.


Agora só uso. E recomendo. Se você soubesse como é mais elegante, também deixaria de utilizar e passaria a usar.


Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em "ilizar". Se nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente em "ar". Todos os dias, os maus tradutores de livros de marketing e administração disponibilizam mais e mais termos infelizes, que imediatamente são operacionalizados pela mídia, reinicializando palavras que já existiam e eram perfeitamente claras e eufônicas.


A doença está tão disseminada que muitos verbos honestos, com currículo de ótimos serviços prestados, estão a ponto de cair em desgraça entre pessoas de ouvidos sensíveis. Depois que você fica alérgico a disponibilizar, como vai admitir, digamos, "viabilizar"?


É triste demorar tanto tempo para a gente se dar conta de que "desincompatibilizar" sempre foi um palavrão. Precisamos reparabilizar essas palavras que o pessoal inventabiliza só para complicabilizar. Caso contrário daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações:


"Você não vai me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quilibiliser".


Problema seu. Me inclua fora dessa.


"Não menos do que o saber, agrada-me duvidar."


Dante Alighieri (1265-1321

PUBLICADO EM:

http://juliocsartori.blogspot.com/2007/06/verbos-novos-e-horrveis-ricardo-freire.html?spref=bl

domingo, 3 de julho de 2011

A seca e o inverno



Na seca inclemente no nosso Nordeste

O sol é mais quente e o céu, mais azul

E o povo se achando sem chão e sem veste

Viaja à procura das terras do Sul


Porém quando chove tudo é riso e festa

O campo e a floresta prometem fartura

Escutam-se as notas alegres e graves

Dos cantos das aves louvando a natura


Alegre esvoaça e gargalha o jacu

Apita a nambu e geme a juriti

E a brisa farfalha por entre os verdores

Beijando os primores do meu Cariri


De noite notamos as graças eternas

Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes

Na copa da mata os ramos embalam

E as flores exalam suaves perfumes


Se o dia desponta vem nova alegria

A gente aprecia o mais lindo compasso

Além do balido das lindas ovelhas

Enxames de abelhas zumbindo no espaço


E o forte caboclo da sua palhoça

No rumo da roça de marcha apressada

Vai cheio de vida sorrindo e contente

Lançar a semente na terra molhada


Das mãos deste bravo caboclo roceiro

Fiel prazenteiro modesto e feliz

É que o ouro branco sai para o processo

Fazer o progresso do nosso país.


Cordel de Patativa do Assaré, ilustrado por Joana Lira

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Maria, Causo Popular.

Nasci no sítio Belém e pur lá mermo me criei,
E derna de novo jurei  nunca casá com ninguém.
Prú arte não sei de quem,
Com Maria me Encontrei,
Passei dois meis namorando, mais dois me noivando
Quando foi no quinto me casei.

Me casei na boa fé,
Mas pru pintura do diacho,
Lá perto morava um macho,
Iludidô de muié.

Um tal de Joca Romeu, que certo dia apareceu na casa em que nois vivia,
Com um jeitão todo estranho e dois oião desse tamanho, butecado pra Maria.
Com pouco tempo passado eu notei que tinha arranjado um "sosso"
pois ela inventou uns "negoço" di nois drumi apartado,
Inventou uns bucho inchado, dor de cabeça e ouvido
um tá de istrambu duído e umas friera no pé,
Essas manha de muié quando querem largar os maridu.

Fiquei pensando...
Ói, será que me acostumo?
Eu morreno de ciúme e o amor deles cresceno.
Aquelas coisas eu veno,
Ela toda deferente e ele metido a valente,
E pra incurtar a novela
Ele tratou de buscar ela, na outra noite da frente.
Quando eles iam saino o Joca perguntou  pru eu,
Aí Maria respondeu:
 -  "Quá!  o bestaião  tá drumino"
Aquelas coisas eu ouvino, me alevantei  tomém.
Quando ela disse:
 -" Oi ele vem, mais não vai temer arroxo, que esse chifrudo é um frouxo nunca brigou com ninguém"

Já era madrugada quando ele levou Maria que  quando assustei eles lá iam descambando chapada abaixo.
Lasquei o pé na estrada gritando pra ver se ela me ouvia: " vem cá Maria,  eu gritava, volta pra donde ocê morava".
Quanto mais eu gritava , mais a diaba corria..

Sabe o que se assucedeu com esse amor de nois dois?
Dez anos depois, Maria me apareceu.
Deixou o Joca Romeu, chegou toda deferente com uns oito fio na frente.
Uns com tosse, ôtos com aids, ôtos com gôgo..
E oia que tenho comido  fogo para sustentar tanta gente!

Geraldo Amancio contador de causo


domingo, 5 de junho de 2011

Perguntas à Língua Portuguesa

Perguntas à Língua Portuguesa

Mia Couto


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?

Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?

Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

• O mato desconhecido é que é o anonimato?

• O pequeno viaduto é um abreviaduto?

• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.

• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?

• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

• Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

• Mulher desdentada pode usar fio dental?

• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

• Um tufão pequeno: um tufinho?

• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

• Em águas doces alguém se pode salpicar?

• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.

Devolver a estrela ao planeta dormente.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Antes do anoitecer/ Antes que Anoiteça - Before Night Falls

Após ser educado com a Revolução Cubana e premiado nacionalmente por seu trabalho, o escritor Reynaldo Arenas termina sendo preso e, posteriormente, exilado de seu país-natal. Conheça a vida de Reynaldo Arenas, desde sua infância pobre até seu exílio em Nova York, passando pelo horror e preconceito sofrido ainda em Cuba, pelo fato de ser homossexual.
Legendado!


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TRAILER DO FILME

 
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sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Discurso do século

O Discurso do século
Um surpreendente discurso feito pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, de descendência indígena, advogando o pagamento da dívida externa do seu país, o México, deixou embasbacados os principais chefes de Estado da Comunidade Européia. A conferência dos chefes de Estado da União Européia, Mercosul e Caribe, em maio de 2002 em Madri, viveu um momento revelador e surpreendente: os chefes de Estado europeus
ouviram perplexos e calados um discurso irônico, cáustico e de exatidão histórica que lhes fez Guaicaípuro Cuatemoc.


'Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil

anos, para encontrar os que a descobriram só há 500 anos. O irmão

europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder

descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o

pagamento - ao meu país -, com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse. Outro irmão europeu me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu também posso reclamar pagamento e juros.

Consta no Arquivo da Cia. das Índias Ocidentais que, somente entre os anos 1503 e 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.

Teria sido isso um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento! Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão. Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos tirados das Américas. Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos.

Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação decapitais não foi mais do que o início de um plano 'MARSHALL MONTEZUMA', para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, dapoligamia, e de outras conquistas da civilização. Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos?> Não. No aspecto estratégico, dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias formas de extermínio mútuo. No aspecto financeiro, foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros quanto independerem das rendas líquidas, das matérias-primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça. Sobre esta base e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300. Isso quer dizer um número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra. Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue? Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para esses módicos juros, seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracionalidade dos conceitos capitalistas. Tais questões metafísicas, desde já, não inquietam a nós, índios da América. Porém, exigimos assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente e que os obriguem a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permitam entregar suas terras, como primeira prestação de dívida histórica...'


Quando terminou seu discurso diante dos chefes de Estado da Comunidade Européia, o Cacique Guaicaípuro Guatemoc não sabia que estava expondo uma tese de Direito Internacional para determinar a verdadeira dívida externa.

Publicada por Helder de Sousa , como sempre, textos superinteressantes. Valeu Turga, querido!






















O (falso) Decálogo de Abraham Lincoln

Num país de invejosos, mentes pequenas, arranjistas, onde a devassa da vida privada se tornou um desporto, onde olhar pelo buraco da fechadura do vizinho é o passatempo mais apreciado e o esquema do “já agora” é a máxima do oportunismo, vale a pena relembrar os dez mandamentos do 16º Presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln.

É certo que, depois disto, veio o capitalismo, com os seus bens e os seus males. Muitos dos que, em vez de trabalhar, andam entretidos a denunciar os vencimentos de algumas pessoas, como se, com isso, resolvessem os problemas dos pobres, e endireitassem a crise do país, melhor fariam se metessem menos baixas, se acabassem com o absentismo no trabalho, se olhassem para si póprios e tentassem progredir, se não profissionalmente, pelo menos como indivíduos úteis à sociedade.

Para esses aqui publico o Decátologo de Abraham Lincoln. Provavelmente, para muitos, estas dez ideias entram a 100 e saiem a mil, como se contivessem a maior inutilidade. São os que vivem a vida à espera do subsídio, da fuga às responsabilidades e aos impostos, dos que chamam a televisão para resolverem os seus problemazinhos pessoais, dos que passam o tempo à porta da Junta de Freguesia.



1. Não se pode criar prosperidade desalentando a Iniciativa Própria.

2. Não se pode fortalecer o débil, enfraquecendo o forte.

3. Não se pode ajudar os pequenos, esmagando os grandes.

4. Não se pode ajudar o pobre, destruindo o rico.

5. Não se pode elevar o salário, pressionando quem paga o salário.

6. Não se pode resolver os seus problemas enquanto se gasta mais do que se ganha.

7. Não se pode promover a fraternidade da humanidade, admitindo e incitando ao ódio de classes.

8. Não se pode garantir uma adequada segurança com dinheiro emprestado.

9. Não se pode formar o carácter e o valor do homem tirando-lhe a sua independência (liberdade) e iniciativa.

10. Não se pode ajudar os homens permanentemente, realizando por eles o que eles podem e devem fazer por si mesmos.


Mas, na melhor sopa cai a mosca. Continuando a pesquisa sobre este tema, descubro que, afinal, o decálogo é falso, que não foi Lincoln quem o escreveu. O decálogo, cujo título original é "The ten cannots" (Os dez não se pode) pertence ao reverendo William J.H. Boetcker, um presbiteriano norte-americano de origem alemã(1873-1962), que o publicou em 1916.

De tanto se atribuir a autoria destas máximas a Lincoln, o próprio Ronald Reagan, num discurso, mencionou o Decálogo como tendo sido do seu antecessor na presidência dos EUA.

 por Helder de Sousa

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Boa noite Hilda Hilst

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.

O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.

E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.


Hilda Hilst



quarta-feira, 18 de maio de 2011

Uma Revolução Intelectual

“Enquanto se pensava que com as leis de Newton

e as que lhe sucederam podíamos compreender o universo,

o diálogo com as outras civilizações era um diálogo

de professor e aluno, aluno primário.”

Ilya Prigogine, “Nome de Deuses”, Ed. UNESP, 2002, p:64


Na segunda metade do Século 20, o físico norte-americano, Thomas Kuhn, e o químico russo, Ilya Prigogine, revolucionaram a epistemologia e a história da ciência, colocando uma pá de cal sobre a visão positivista do conhecimento, e um ponto de interrogação definitivo sobre todas as teorias mecanicistas e deterministas, a respeito do mundo físico, do cosmos e das sociedades humanas. Para Thomas Kuhn, o avanço da ciência não é cumulativo, nem se dá de forma linear e contínua. Pelo contrário, ocorre de forma descontínua e através de grandes rupturas, ou “revoluções científicas”.

Elas assinalam um momento de “mudança de paradigmas”, que são definidos por Kuhn como uma maneira particular de olhar o mundo, articulando, de forma coerente, problemas, conceitos, métodos de pesquisa e critérios de verdade que só são válidos dentro de determinadas comunidades específicas, e durante períodos determinados de tempo. Por outro lado, Ilya Prigogine rebelou-se contra o determinismo e o mecanicismo das teorias de Isaac Newton e Albert Einstein e demonstrou que a irreversibilidade do tempo, a desordem e a incerteza são elementos essenciais e construtivos, do mundo físico e biológico. Ou seja: Kuhn defende a historicidade da ciência e dos seus critérios de verdade; e Prigogine defende a importância da “flecha do tempo” e das “escolhas”, para a construção do futuro de um universo físico e de uma sociedade humana, que são rigorosamente imprevisíveis.

Por analogia, também é possível falar da existência de “paradigmas” e de “revoluções intelectuais” no campo do pensamento social, onde se formam e se transformam os valores, conceitos e critérios de verdade que as sociedades humanas utilizam para interpretar o seu passado e o seu presente, e para descodificar e responder às incertezas do seu futuro. São modelos, enfoques e crenças que atravessam o pensamento acadêmico e o pensamento político – de esquerda e de direita — e também fazem parte do senso comum e da formação da opinião publica. Estes “paradigmas sociais” também são válidos apenas para certas comunidades específicas, e durante um certo período, por mais longo que ele possa vir a ser. Com o passar do tempo e das mudanças sociais, entretanto, estes paradigmas “societários” perdem fôlego, se esclerosam, e acabam sendo superados por novas “visões do mundo”, mais capazes de compreender e enfrentar os desafios criados pela chegada do futuro.

Pois bem: tudo indica que a América Latina e o Brasil estão vivendo um destes momentos de “revolução intelectual” e de mudança da sua forma de olhar para si mesmo e para o mundo. De um lado há um “paradigma intelectual” em franco declínio, incluindo algumas idéias e teorias de esquerda e de direita, que já não dão conta das transformações do continente — e do Brasil, em particular. Seus conceitos e seus debates parecem velhos e repetitivos e por isto filtram as novidades trazidas pelo futuro de forma extremamente reativa, defensiva e medrosa. Alguns “intelectuais orgânicos” deste velho paradigma vivem fascinados pela ideia do “fim”, seja da democracia, do capitalismo, das espécies, ou da própria Terra. Outros, estão sempre lamentando as “imperfeições constitutivas” da sociedade latino-americana, tão distantes dos seus modelos ideais de sociedade civil, de classe social, de partido político, ou mesmo, de estado e de capitalismo, E quase todos vivem atormentados com medo do populismo, do corporativismo, do nacional-desenvolvimentismo, do estatismo, entre tantos outros fantasmas do passado. Sem se dar conta que este conceitos e algumas de suas velhas teorias sociológicas e econômicas perderam aderência aos fatos, e já não demonstram nenhuma eficácia como ferramentas analíticas e como instrumentos estratégicos, voltados para a construção do futuro.

Apesar disto, entretanto, ainda não se pode falar do aparecimento e da existência de novas teorias consistentes, e o próprio continente latino-americano ainda não superou alguns de seus grandes desafios sociais e econômicos. Mas com certeza já se pode falar de uma “revolução intelectual” e de um novo “paradigma”, porque já se consolidou uma nova maneira do continente olhar para si mesmo, para o mundo e para os seus desafios, assumidos como oportunidades e como escolhas que devem ser feitas, a partir de sua própria identidade, e de seus próprios interesses.

Alguma vez, Jean Paul Sartre disse que “era mais fácil ser escravo do que senhor”, e talvez de fato, seja mais fácil pensar como escravo do que como senhor. Mas depois desta “revolução intelectual” da America Latina, já não há mais necessidade de ninguém seguir pensando como escravo, ou mesmo, como aluno primário das “civilizações superiores”.


Por José Luis Fiori

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Boa tarde Hilda Hilst

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida

Na palavra escrita.
Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

Hilda Hilst

Incentivo à leitura e democracia

Política de leitura, linguagem e a (anti)democratização do espaço urbano

Carmen Lúcia Bezerra Bandeira*


Na última quarta-feira à noite (12 de abril) compareci a uma biblioteca comunitária para assistir à atividade Encontro com o poeta, que deveria ter sido inaugurada, mas, por um ruído de comunicação, acabou não acontecendo.

As crianças ficaram frustradas e eu também, mas, por outro lado, pude testemunhar uma sucessão de fatos dramáticos relacionados ao cotidiano de uma biblioteca comunitária, que não podem deixar de ser considerados pelos gestores de políticas públicas, uma vez que dizem respeito ao propósito da democratização do acesso à leitura e rebatem diretamente no exercício de compartilhamento das linguagens, no aprendizado do uso coletivo dos bens culturais e na apropriação democrática do espaço urbano.

O aspecto que me chamou a atenção, de imediato, foi a quantidade de crianças, inclusive muito pequenas, que procuram o espaço da biblioteca comunitária à noite. No entanto, o lugar é tão pequeno, que não comporta mais do que quinze crianças em seu interior e por isso, várias tiveram que voltar para casa, sob a justa alegação das mediadoras de leitura de que não havia mais vagas.

Vi uma criança de mais ou menos seis anos, voltar pra casa chorando, segurando na mão da irmã mais velha e fiquei entristecida ao pensar que precisamos de tragédias iguais a da escola do Realengo, para produzir notícias sensacionalistas e nos indignar, pois perdemos, ao que parece, a capacidade de nos sensibilizarmos diante da violência velada do dia a dia, que de tão naturalizada, torna-se dificilmente percebida.

Fiquei a me perguntar como é possível dimensionar ou dar visibilidade à violência contra uma criança de seis anos, que para ter acesso a um livro de literatura e ouvir uma história, precisa sair de casa à noite, quando o livro deveria estar ao seu encalço, numa pequena estante no seu quarto. Pra ela ler ou folhear as páginas, sozinha, interagindo com as imagens e as palavras, se esse for o seu desejo; ou pedir à mãe, ao pai, ou à irmã mais velha para ler ou contar história para ela. E poder comentar, alimentar a imaginação e povoar os sonhos com as aventuras e os personagens das histórias.

Mas quantas crianças dispõem desse ambiente doméstico, com dependências básicas como um quarto, uma cama, estante com livros de histórias e uma mãe, ou um pai, ou um irmão / uma irmã maior, que conte história para elas antes de dormir?

Quem teve o privilégio do acesso a ambientes domésticos, impregnados de livros, jornais, revistas e conviveu com adultos que naturalmente liam e escreviam, não tem dúvida de que este é o caminho privilegiado de acesso ao mundo letrado.

O difícil, talvez, seja imaginar que a maioria das crianças não tem livro de literatura infantil ao seu alcance nas próprias casas. Além de relacionar o impacto direto desse fator com a questão da repetência escolar; com o desafio enfrentado pelos professores das escolas públicas para ensinar a ler a quem não convive naturalmente com o universo das letras.

Por isso, doeu ver a menina que por não ter livros de histórias em casa procurou a biblioteca comunitária para ter acesso ao patrimônio universal que são os clássicos da literatura, - e que, por direito, todas as crianças deveriam conhecer desde a mais tenra idade, como advoga a escritora Ana Maria Machado - e recebeu um NÃO, pela simples inexistência de vaga.

Ela voltou chorando, certamente porque também não conta com o espaço da rua, que é exíguo para a convivência livre com as outras crianças; para brincar de pega, de cantar e tirar verso na roda; para compartilhar histórias contadas pelos adultos, nas noites de lua, sob o céu estrelado.

Se na casa falta o quarto e não tem lugar na biblioteca, a rua também é estreita, esburacada, pouco iluminadas e as crianças ficam expostas a tantas ameaças, que de tão óbvias, dispensam detalhamentos.

Por outro lado, eu até que tentei contar história ou fazer leitura compartilhada com as crianças que conseguiram entrar, mas era impossível pedir que se sentassem em círculo, pois o espaço é realmente muito apertado e me impacientei com tanto desconforto!

Para completar, há um excesso de igrejas na rua tão estreita, que fazem suas pregações em volume tão alto que prejudica qualquer esforço de comunicação através da conversa e da voz natural. E sons e televisões provocando uma poluição sonora tão absurda, que fica difícil falar em política de leitura com o tolhimento absoluto do espaço natural da (con) versação.

Fiquei a me perguntar por que os gestores das políticas públicas, os militantes da educação ambiental, os conselhos e a câmara de vereadores não exercem um monitoramento rigoroso ou iniciam um trabalho educativo de peso para fazer valer a já promulgada Lei do Silêncio? Isto tem que valer para as residências, para os bares, carros e bicicletas de som e para as igrejas também!

Foi tão grande o impacto emocional desta experiência que não parei mais de pensar na relevância do espaço da biblioteca pública como indicador de qualidade de uma política de leitura. Faria uma grande diferença se essa política fosse realizada em parceria com outras entidades e envolvesse, inclusive, a qualificação dos ambientes das bibliotecas comunitárias, pois há que se saber ler este sinal, partindo das próprias comunidades, que expressa uma demanda salutar da população pelo direito à leitura, que começa com o espaço da palavra, com o aprendizado do uso expressivo da voz, com o exercício da livre criação poética e literária.

Assim sendo, é mais do que tempo de considerar que uma política de leitura vai muito mais além do que os programas de distribuição de acervos, que na sua maioria são realizados sem fazer estudo do usuário e sem envolvê-lo na escolha; além disso, não leva em conta a situação dos ambientes para receber os livros, seja no que se refere à dimensão espacial; seja no que se refere à formação de pessoal qualificado para realizar os procedimentos de catalogação; seja pra manter um programa cultural e permanente de formação de leitores, envolvendo a apreciação e o desenvolvimento das diferentes linguagens.

Seria muito importante fazer parceria com a universidade (curso de Biblioteconomia, Letras, Educação, Artes), além de outras instituições congêneres, para pensar programas de formação de mediadores e projetos de intervenção cultural que deveriam priorizar o uso expressivo da voz, o exercício da criação literária e poética, a pesquisa da memória e dos mitos locais, a articulação e desenvolvimento das linguagens, o conhecimento e a busca de comunicação com as diferentes culturas.

E para finalizar, reitero a necessidade de eleger a multiplicação das bibliotecas públicas como prioridade estratégica de uma pública de leitura, que devem ser concebidas como espaços de acolhimento para o cidadão e a cidadã, que têm direito ao aprendizagem da boa convivência; à apropriação democrática dos bens culturais e ao uso coletivo do espaço urbano, para se constituir sujeito ao longo do exercício permanente de práticas leitoras, da apreciação das diferentes formas artísticas e da possibilidade de desenvolvimento da própria linguagem.

* Pedagoga e cidadã leitora