Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, no encalço. Amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. G. Rosa

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Maria, Causo Popular.

Nasci no sítio Belém e pur lá mermo me criei,
E derna de novo jurei  nunca casá com ninguém.
Prú arte não sei de quem,
Com Maria me Encontrei,
Passei dois meis namorando, mais dois me noivando
Quando foi no quinto me casei.

Me casei na boa fé,
Mas pru pintura do diacho,
Lá perto morava um macho,
Iludidô de muié.

Um tal de Joca Romeu, que certo dia apareceu na casa em que nois vivia,
Com um jeitão todo estranho e dois oião desse tamanho, butecado pra Maria.
Com pouco tempo passado eu notei que tinha arranjado um "sosso"
pois ela inventou uns "negoço" di nois drumi apartado,
Inventou uns bucho inchado, dor de cabeça e ouvido
um tá de istrambu duído e umas friera no pé,
Essas manha de muié quando querem largar os maridu.

Fiquei pensando...
Ói, será que me acostumo?
Eu morreno de ciúme e o amor deles cresceno.
Aquelas coisas eu veno,
Ela toda deferente e ele metido a valente,
E pra incurtar a novela
Ele tratou de buscar ela, na outra noite da frente.
Quando eles iam saino o Joca perguntou  pru eu,
Aí Maria respondeu:
 -  "Quá!  o bestaião  tá drumino"
Aquelas coisas eu ouvino, me alevantei  tomém.
Quando ela disse:
 -" Oi ele vem, mais não vai temer arroxo, que esse chifrudo é um frouxo nunca brigou com ninguém"

Já era madrugada quando ele levou Maria que  quando assustei eles lá iam descambando chapada abaixo.
Lasquei o pé na estrada gritando pra ver se ela me ouvia: " vem cá Maria,  eu gritava, volta pra donde ocê morava".
Quanto mais eu gritava , mais a diaba corria..

Sabe o que se assucedeu com esse amor de nois dois?
Dez anos depois, Maria me apareceu.
Deixou o Joca Romeu, chegou toda deferente com uns oito fio na frente.
Uns com tosse, ôtos com aids, ôtos com gôgo..
E oia que tenho comido  fogo para sustentar tanta gente!

Geraldo Amancio contador de causo


domingo, 5 de junho de 2011

Perguntas à Língua Portuguesa

Perguntas à Língua Portuguesa

Mia Couto


Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?

Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas?

Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

• Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

• No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

• O mato desconhecido é que é o anonimato?

• O pequeno viaduto é um abreviaduto?

• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.

• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?

• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

• Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?

• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

• Mulher desdentada pode usar fio dental?

• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?

• Um tufão pequeno: um tufinho?

• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

• Em águas doces alguém se pode salpicar?

• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português - o nosso português - na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas - o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos.

Devolver a estrela ao planeta dormente.